quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Morro do Voturuna – 20 de janeiro de 2013


“Um dia como este foi o suficiente para eu momentaneamente ignorar o dorido fato de que, no trabalho, meus superiores têm tentado, durante as últimas três semanas, me escalpelar”. Com essa frase emblemática de Luiz Paulo Bombarda Blanes, confidenciada a mim em uma das breves paradas nas desertas estradas rurais pelas quais nossas galhardas motocicletas se enveredam, esboço mais um daqueles antelóquios utópicos que permeiam todo o conteúdo deste espaço cibernético que, por enquanto, ainda me é “livre de impostos”, algo que pode parecer surreal no desgostoso – e oneroso – janeiro brasileiro. O senso comum do ser humano moderno o incita a nutrir cada vez mais a carreira profissional, elidindo que apenas um terço de nossas vidas é a ela destinado. Nos outros dois terços, uma parte cabe ao revigorante sono (aos que conseguem dormir, logicamente) e outra ao tempo livre, que muitos dispendem simplesmente não fazendo coisa alguma, ou se matriculando em cursos, especializações e outros possíveis potencializadores de nossas carreiras. É aí que pecamos. Obviamente os mais ensandecidos pela nossa economia de mercado vigente podem argumentar que sou louco, já que tudo é voltado para o labor. Não que estudar não seja necessário. É, afinal subsistimos em uma época em que o progresso dita o ritmo da toada. Apenas creio que nos debruçamos em demasia numa questão que não ocupa sequer a metade do nosso dia. Paro por aqui para não me aventurar, com meu pedantismo a tiracolo, pelo campo sociológico. Delego este assunto ao grande mestre Domenico De Masi. E lamento que Luiz e grande parte de meus convivas estejam assim, sofrendo por motivos não meritórios, preferindo o trabalho à vida. E o pior de tudo: viajando pouco.
Companheiros de aventura
A ideia de explorar o Morro do Voturuna, imponente elevação quartzítica, de vegetação rasteira em seus píncaros, compreendida no cerne do triangulo imaginário formado pelos municípios de Pirapora do Bom Jesus, Santana de Parnaíba e Araçariguama, surgiu a partir de recentes incursões pela Estrada dos Romeiros, que liga Itu a Barueri beiradeando o nosso famoso e judiado rio Tietê. Em incontáveis ocasiões eu o contornei pelo asfalto, acreditando que seu cume era de difícil – senão impossível – acesso. Infatigável em minhas pesquisas, que sempre me relegaram à estaca zero, deparei-me com algumas fotos e relatos de Benê Moura, um morador das redondezas que detinha um material interessante sobre o morro. Entrei em contato com o mesmo que, prestativo, me forneceu mapas de trilhas e informações adicionais para que eu tentasse, pela primeira vez, subi-lo, e não apenas observá-lo de longe. Além de sua altivez e importantes valores paisagístico e ambiental, o Voturuna, por sua localização geográfica privilegiada e por estar numa região aclamada como “o berço dos bandeirantes”, incita à releitura de uma das fases mais sombrias e mal estudadas de nossa História: a época bandeirantista. Não precisava de motivos para ir até ele, mas foi bom saber que tinha vários. Restou-me recrutar meus companheiros de outros verões Levi Vieira e Luiz Paulo Blanes, além de minha resistente namorada Luana Romero. O professor Rafael Ferreira também se juntaria a nós, nessa que seria sua primeira viagem sobre duas rodas (e sobre dois pés também). Quatro motocicletas, cinco seres humanos e o Voturuna, além de 150km de surpresas entre eles: completava-se o debuxo.
Luiz Paulo, o letárgico
Partimos de Americana às 6:10h da manhã de um 20 de janeiro que se revelou frio e pouco nublado, a despeito do calor e das chuvas constantes que assolaram a última semana. De plena consciência que temporais vespertinos de verão, mesmo rápidos, poderiam inviabilizar nossa pequena incursão, optamos por arriscar uma saída ainda sob a luz das estrelas e da lua, maximizando nossas chances de chegar ao local pretendido antes que uma líquida blitzkrieg nos dissuadisse de nossos intentos. Luiz Paulo não compareceu ao local marcado e deixamos o bairro da Praia Azul sem o mesmo. Acessamos a rodovia Anhanguera, na qual permanecemos até o trevo de Sumaré. Cruzamos todo o centro da cidade e aguardamos Luiz Paulo, que se atrasara, nas imediações da avenida Rebouças. Às 7h, um ainda letárgico aventureiro se unia a nós, enveredando-se conosco pelo bairro rural do Cruzeiro, com sua singela igrejinha de torre central iluminada pelo halo dos primeiros raios de sol do dia, e pela vicinal Sumaré-Monte Mor, uma estrada de apenas 14km airada por um bucolismo muitas vezes raro de se encontrar em grandes centros urbanos. É uma estrada extremamente fotogênica, pontilhada por lagoas represadas; grandes pastagens; pequenas elevações, que lembram as coxilhas gaúchas;, árvores frondosas, cujos galhos se dispõem sobre o asfalto, formando túneis naturais e cercas vivas coloridas por exuberantes e violetas quaresmeiras; e um desenho sinuoso, cujo serpentear exige cautela do motociclista e uma velocidade moderada se o intuito é detalhadamente admirar tudo o que tem a exibir. Fui apresentado a essa pequena via, que não consta em muitos mapas rodoviários, pelo meu grande camarada Fernando Santarrossa, isso lá pelo idos de 2011, e desde então, sempre que a rota me permite, procuro passar por estas plagas.

Igreja do bairro rural do Cruzeiro, em Sumaré

Encantos da estrada Sumaré-Monte Mor

Igreja de São Benedito
Uma plácida Monte Mor nos recepcionou. Nenhum de seus moradores se arriscara a palmilhar as ruas nos derredores da diminuta Igreja de São Benedito, de um amarelo pálido e, a exemplo de sua não distante parente no bairro do Cruzeiro, de única torre central. Seu simples relógio, arredondado, mas em um quadrado emoldurado, apontavam 7:40h. Uma breve consulta em meus mapas nos indicou que o rio Capivari corria próximo, incitando-nos a um adendo nos planos originais. Rapidamente aceleramos para longe dali, testemunhando a cidade de 43000 habitantes despertar à medida que trafegávamos por suas principais avenidas. Sobrepassamos, nos limites da cidade, a rodovia SP101, e nos mantivemos na terra da Estrada do Rio Acima por pouco mais de 200m. Deparamo-nos com o rio Capivari, como desejado. Corria forte e ligeiramente mais alto que seu nível habitual. Em uma de suas recentes cheias deve ter sacrificado a antiga ponte, visto que as fundações de uma nova se erigiam. Por uma escada de madeira alcançamos o alto da estrutura e obtivemos uma boa vista do rio, cuja mata ciliar, de um lado, não passava de algumas pequenas árvores e, do outro, simplesmente inexistia. É mais um dos degradados afluentes do também degradado Tietê. Como esperar que um gigante caminhe para uma plena revitalização se suas pernas e braços o desestabilizam? Lamentamos ao mesmo tempo em que registramos, pousado à copa da vegetação secundária (ou terciária, ou quaternária), uma biguatinga fêmea, valente sobrevivente desse meio que a mim me pareceu, a priori, tão inabitável. Ademais, Luiz observou, quando já nos preparávamos para abandonar aquele desestimulante cenário, a presença do guaranazeiro, de cujo extrato dos frutos é extraída a guaraína ou cafeína, estimulante leve que, dentre outros propósitos, nos auxilia no difícil ato de acordar cedo, num domingo, para desbravar o Brasil.

Rio Capivari

Biguatinga fêmea

Guaraná

Estrada Parque Itu-Cabreúva
Meros 3km depois, SP101 abaixo, pendemos para o sudeste pela Estrada Municipal Monte Mor-Indaiatuba, que apesar de bucólica, como a Sumaré-Monte Mor, não é tão paisagisticamente encantadora. Alguns lagos represados, vacarias, eucaliptos e vegetação rasteira ladearam o asfalto até Indaiatuba, recentemente rotulada como a melhor cidade para se viver nesse imenso Brasil. Logicamente foram levados em conta, para a consolidação de tal avassaladora posição na classificação, aspectos econômicos e o suposto fino trato em áreas como Educação e Saúde. Não quero subtrair o mérito da pesquisa e nem protrair-me muito nesse assunto, mas friso que a cidade em que moro, Americana, ficou na 18ª colocação, nesse mesmo ranking, e seus veios educacionais não vão nada bem. Nem menciono a Saúde, há muito negligenciada pelo poder público. No fim, os lugares tidos como os mais desenvolvidos são aqueles em que os moradores são capazes de consumir mais. Os caracteres humanos são deixados de lado quando um grupo de pessoas goza de uma boa renda e contribui para o enriquecimento material aparente de uma determinada cidade. Foi a sensação que tive, e que não foi necessariamente a mesma que a de meus companheiros de aventura, quando seguimos o traçado do córrego do Belchior, dentro da área concernente ao Parque Ecológico de Indaiatuba. Aqui, carros importados estacionados, pessoas com indumentárias de grife correndo, cachorros de raças europeias. Ali, não muito adiante, em uma feira livre, o panorama já era discrepante e tudo parecia estarrecedoramente mais humilde. O contraste, portanto, existe a despeito de todo o afamado desenvolvimento. Foi este último que me fez sair logo dali, ciceroneando meus convivas pelas SP075 e SP300, apeando novamente apenas no portal amadeirado da Estrada Parque Itu-Cabreúva.

Ponte sobre o rio Tietê, em Itu

Garça-boiadeira
  
Aracnídeos por todos os lados
Se em Indaiatuba há divergências entre as aquisições materiais, na Estrada Parque Itu-Cabreúva, um curto pedaço da Estrada dos Romeiros que recebe essa denominação por entrecortar uma Área de Proteção Ambiental, há um duelo constante entre o vistoso e o horrendo. Lembro-me das palavras de Ari Fernando Borsetti Jr, que em uma de nossas incursões por essas paragens exclamou: “não há como achar um lugar belo se todos os sentidos não forem satisfeitos”. Disse isso porque o odor fétido do rio Tietê, cujo curso é acompanhado pela estrada, destoa da visão inspiradora proporcionada pela mata atlântica relativamente bem preservada, que sombreia todo o caminho e abaixa em alguns graus centígrados a temperatura ambiente. De uma ponte, no formato da espinha dorsal de um brontossauro ou qualquer outro grande herbívoro jurássico, observa-se a avifauna que insiste em não abandonar o rio mais poluído do Brasil: garças-boiadeiras (que não vivem da pesca como suas parentes, mas dos carrapatos do gado), garças-brancas-grandes e biguás. Aracnídeos se dependuram onde é possível, tomando a obra de engenharia por completo. Quem conhece sua límpida nascente, na Serra do Mar de Salesópolis, e suas transparentes águas nas prainhas de Pereira Barreto e do oeste paulista, na iminência do encontro com o rio Paraná, parece estar defronte a um outro Tietê, que aqui exibe seu trecho mais poluído. Uma outra característica notável desse ponto, e que passaria a ser uma constante até a cidade de Pirapora do Bom Jesus, é a presença de ilhotas de vegetação atlântica, umas enormes, e outras com apenas duas árvores de médio porte e nada mais. Enfim, é um monstro líquido que, no decorrer de seus 1010km de extensão, nasce, fenece e renasce, feito a fênix, e especificamente nesse confim se sustenta numa linha tênue entre a vida e a morte.

Biguás resistindo à poluição

Usina Hidrelétrica de São Pedro
  
Um marco de 1923 na Gruta da Glória
Avançando, deparamo-nos com a antiga Usina Hidrelétrica de São Pedro, construída em 1911 e atualmente desativada. A barragem continua lá, e as águas do Tietê, cheirando a amaciante de roupas, passam livremente por onde anteriormente uma barreira de contenção, que aberta fazia as vezes do vertedouro, inundava a represa. É uma parte bem pedregosa do leito, na qual os biguás pescam e se secam ao sol. Uma aproximação para fotos mais detalhadas não é permitida, e então seguimos, sempre acompanhando o rio contra o seu fluxo, atracando nas proximidades da Gruta da Glória, ou Escalada da Glória, um atrativo natural composto por grandes rochas circulares que rolaram do alto da serra, formando uma pequena caverna sabe-se lá quando. Washington Luiz, governador de São Paulo à época da construção da estrada, em 1922, em suas inspeções de andamento da obra, descansava nesse acidente natural e bestificava-se com a vista proporcionada por ele. O cenário hoje certamente é menos digno de admiração, mas nem por isso passa despercebido. Há de se entristecer apenas com o vandalismo descabido, que marca à tinta rochas seculares, e com o descuido daqueles que produzem lixo e não o descarregam em lugares adequados. No mirante, que se alcança subindo os degraus de cimento construídos para um melhor acesso, visualiza-se a forte correnteza do Tietê e os morros da outra margem, salpicados de pedras graníticas arredondadas e cobertos por uma rala vegetação que, infelizmente, serve de pastagem ao gado local. Aliás, esse é um outro embrolho. Do lado em que estávamos, a mata ciliar, mesmo que não primária, existia. Do outro não há predominância de gramíneas. Preservar a plenitude de algo cada vez mais é uma utopia, inconcebível nos dias atuais.

Gruta da Glória

Rio Tietê visto do mirante da gruta
  
Pirapora do Bom Jesus
Findados os 8km da Estrada Parque, chegamos à diminuta Cabreúva. Contornando-a rapidamente, localizamos em uma de suas saídas a continuação da Estrada dos Romeiros. É um trecho em que o desenho da Serra do Piraí obriga a estrada a afastar-se momentaneamente do rio Tietê. De alguns pontos elevados se avista o vale, magnífico, mas parar é impossível devido à estreiteza da via e à falta de acostamentos. Na descida da serra já era possível avistar, ao longe, a Serra do Voturuna, nosso escopo. Ao norte, uma muralha verde e densa, a Serra do Japi, elevava-se soberana. É a serra com as altitudes mais elevadas na região. Em Pirapora do Bom Jesus, cidade muio procurada por romeiros, encontramos o Tietê salpicado de blocos espumosos densos. Sobre uma ponte fotografamos um cenário que com certeza não perderia em garbo para Veneza, na Itália, se o “água verdadeira”, significado de Tietê em tupi, não estivesse tão desfigurado. As antigas construções beira-rio praticamente mergulham seus alicerces no leito. A Igreja do Bom Jesus e o Seminário Premonstratense, sendo esse último mais elevado que o primeiro, dão a impressão – e a certeza – de que tudo na cidade é derivado da fé catolicista. Há um cruzeiro, subindo em direção ao Morro do Capuava, de onde se obtém uma completa panorâmica da cidade e das serras adjacentes. Vê-se a Serra do Piraí, o Tietê e o conglomerado urbano de Pirapora do Bom Jesus, a oeste; a Serra do Japi, ao norte; e ao sul, agora não tão distante, o Morro do Voturuna, com um de seus flancos desgastado pela extração mineral de quartzo e dolomita. Estávamos perto, mas tentaríamos subi-lo pelo outro lado, o de Santana de Parnaíba.

Pirapora do Bom Jesus e Serra do Japi vistas do Morro do Capuava

Serra do Voturuna

Seminário Premonstratense em destaque

Santana de Parnaíba
Novamente nos enveredamos pela Estrada dos Romeiros, mas agora com o Tietê à esquerda avolumado na forma do Reservatório de Pirapora, alimentador das turbinas da barragem de Pirapora do Bom Jesus, no sopé do Morro do Capuava. Quatorze quilômetros depois a histórica Santana de Parnaíba já nos envolvia, primeiramente com suas construções urbanas modernas e ulteriormente com seu casario colonial das centúrias de XVI, XVII, XVIII, XIX e XX, constituinte do maior acervo arquitetônico tombado do Estado de São Paulo. Utilizamos o largo da Matriz de Sant'Ana, igreja construída em 1892 no lugar da frágil capela erguida por Suzana Dias em 1580, para estacionar as motos e palmilhar as ruas de Cima, do Meio e de Baixo, como são conhecidas as três principais vias do Centro Histórico. Vale frisar que 1580 é o ano de fundação da cidade, e Suzana Dias, mameluca, é aclamada como fundadora. Há inclusive um busto em sua homenagem na praça defronte ao templo católico. Ao lado direito da igreja há uma outra praça: a XIV de Novembro. É em seu muro de sustentação que escravos eram acorrentados, expostos e comercializados nos séculos XVI e XVII. Para se chegar a ele descemos uma escadaria que calha com a casa, erigida na segunda metade do século XVII, do temido Anhanguera (“diabo velho”), nome dado pelos índios ao impiedoso bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que carregava consigo seu filho homônimo em jornadas pelo Triângulo Mineiro e Goyaz, ensinando-o a árdua faina. Não o confundam com Bartolomeu Bueno de Couto, também bandeirante, sádico colecionador de orelhas de escravos negros. Chegou a ter 3200 pares delas. Por falar em bandeirantes, muitos deles moraram em Santana de Parnaíba. Podemos citar Fernão Dias Falcão, André Fernandes e Domingos Jorge Velho, esse último o desmantelador do Quilombo dos Palmares e responsável direto pela morte do líder negro Zumbi.

Casa do Anhanguera

Neste muro os escravos eram acorrentados e expostos para venda

A História vista a olho nu
Andar pelas ruas de Santana de Parnaíba é ratificar – ou não – o que os livros de História nos contavam em nossa juventude. Casas de taipa de pilão, ruas de paralelepípedos, portas e janelas de grossa madeira e dimensões exageradas, tudo remetendo ao Brasil Colônia. A fiação elétrica moderna polui o visual, mas fora isso é um local digno da visitação de quem admira aglomerados históricos. Muitos paulistas expressam o desejo de conhecer as cidades históricas de Minas Gerais, mas negligenciam essa que é uma das mais antigas cidades do Brasil. Para se ter uma ideia, a primeira povoação efetiva do solo paulista (quiça brasileiro) foi a Vila de São Vicente, hoje Santos e São Vicente, datada de 1532. Menos de 50 anos depois, com a difícil transposição da Serra do Mar e o grassar dos colonos pelo Planalto de Piratininga, surgia a Vila de Santana de Parnaíba. São Paulo, antigamente São Paulo de Piratininga, é-lhe praticamente contemporânea, datada de 1554. Ouro Preto, em Minas, é do século XVIII, bem mais recente. Como supracitado, boa parte de seus moradores se dedicavam ao exercício bandeirantista, organizando expedições que saíam daqui, do “berço dos bandeirantes”, em busca de ouro e escravos indígenas no interior do país, uns visando receber títulos da coroa portuguesa pelos seus achados e outros apenas arrumando subterfúgios para exercitar a crueldade e o ódio inerentes aos seus corações. É aí que o Morro do Voturuna, ao qual nos dirigimos após uma breve visita ao Museu Parnaibano de Música, incrusta suas raízes na História, pois, sendo o morro mais elevado da região, servia de mirante natural aos homens que, à época, desprovidos de bússolas, guiavam-se apenas por referências geográficas no horizonte, como montanhas, planícies e rios caudalosos. Contavam, esporadicamente, com a ajuda de índios, preados ou não. Embora o horizonte de hoje seja totalmente diferente, subiríamos o Voturuna, que sofregamente resiste ao passar das centúrias.

Museu Parnaibano de Música

Adeus, Santana de Parnaíba
  
Estrada de chão para o Voturuna
De Santana de Parnaíba se ramifica uma vicinal chamada Estrada Ecoturística do Suru, e foi por ela que prosseguimos. Deixamos os últimos bairros urbanos para trás, passamos por várias chácaras e sítios e localizamos um pequeno lago, à direita da estrada, do lado do qual se principiava uma estrada mesclada de terra e cascalho. Pilotar por ela aviva uma estranha sensação, já que observamos o Morro do Voturuna se aproximando horizontalmente e se distanciando verticalmente, com a porção norte mais pontiaguda, e não arredondada como a víramos em Pirapora do Bom Jesus. Resumindo, chegar aos seus contrafortes é uma tarefa relativamente rápida; subi-los, a pé, seria outra estória. Nos últimos metros da estrada, uma pouco íngreme, mas barrenta ladeira, fez com que o pneu traseiro de minha moto girasse em falso. Luana e eu esperamos que meus convivas, que já haviam ascendido, retornassem. Por fim regressaram, e com o grupo reunido defronte aos portões do último sítio da estrada, em um local com algum trânsito de moradores locais, abandonamos, por ora, nossas motocicletas, subindo a escorregadia via a pé. Fotografamos, no caminho, um caxinguelê, o esquilo sul americano, serelepe exercitando-se num sobe e desce frenético pelo caule de um pinheiro. Cem metros depois, a estrada para automóveis se encerrava e a mata atlântica se adensava. Por uma picada nos embrenhamos, vencendo troncos crivados por fungos vermelhos caídos sobre ela. Acompanhando o marulhar de um ribeirão, que depois se intensificou, topamos com uma pequena cachoeira, que caía em degraus de uma altura de talvez 10 metros. Suas águas queimavam a pele de tão frias.

Caxinguelê

Trilha a pé

Cachoeira do Voturuna

Primeira vista de São Paulo
Retrocedendo alguns metros, localizamos uma ramificação da trilha, que antes nos passara despercebida pela premência de chegar à cachoeira, e por ela subimos a parte mais verticalizada de todo o percurso a pé. Enormes pedras faziam a vez de degraus. Raízes sobressalentes da exuberante mata atlântica, corrimões naturais, auxiliavam no equilíbrio. Beiradeamos a cabeceira da cachoeira, vencendo perambeiras que, se não relevássemos a umidade da trilha e a possibilidade de escorregões abruptos, poderiam ser fatais. Muito acima, a densa vegetação perdeu sua força, dando lugar a um cerrado recoberto de samambaias selvagens e pequenas árvores de caule retorcido. O aroma, emanado com a ajuda do calor do sol, deixava-se propagar com a ajuda do brando vento, atingindo nossa narinas e incitando-nos a descansar sobre um amontoado de pedras, uma espécie de mesa natural, ao lado do ribeirão que desce o morro, formando a cachoeira. Foi nesse momento que consultei meus mapas e descobri que, na verdade, estávamos a poucos passos de uma nascente. Avançamos, cruzamos um brejo e, num capão, uma pequena poça d'água não nos suscitou dúvidas. Ali estava uma das nascentes do Ribeirão Santo André, que deságua, em território parnaibano, no rio Tietê. Mais à frente, detendo nossos olhos a leste e envolvidos pelas amarelas cascaveleiras e outras flores de tons violetas, a cidade de São Paulo, ao longe, exibia sua imensidão. É tão bela vista de longe! Tem ares de uma ambiciosa maquete, guarnecida pela Serra da Cantareira e o seu ponto culminante e mais famoso, o Pico do Jaraguá. Gosto da cidade de São Paulo assim, distante, aparentando organização e harmonia.

Área da nascente do ribeirão Santo André

Transição entre cerrado e mata atlântica

Pico do Jaraguá

Alcançando o topo
Nas últimas pernadas, ainda subindo, cruzamos uma outra parte de mata fechada e o cume ao qual pretendíamos chegar, visível há algum tempo, aproximou-se ainda mais. A trilha sumiu, mas já não carecíamos dela. Entre as ásperas samambaias ascendemos pelos últimos metros, e um campo rupestre, fragoso, nos acompanhou até o topo. Meu altímetro, sobre uma espécie de marco feito com pedras do próprio morro empilhadas, marcava 1092m de altitude. Não é o ponto culminante do Voturuna (ou Boturuna, ou Ivoturuna, nomes com o qual também é conhecido), que em uma porção que meus mapas não conseguiriam nos levar tem 1238m. Ainda assim é uma estonteante vista da região. Vê-se Santana da Parnaíba, com a torre da Igreja de Sant'Ana sobressaindo-se em meios às baixas construções adjacentes, apontando de onde saíramos três horas atrás; a cidade de São Paulo, distante 30km em linha reta; um flanco do próprio morro “roído” pela mineração; e o Morro do Saboó, duas corcovas de camelo pertencentes a São Roque, ao sul. A vista norte, contudo, foi a que mais me impressionou. O rio Tietê, na forma do Reservatório de Pirapora, emparedado a nordeste pela Serra dos Cristais, e ao norte por um conjunto de serras que começam em baixas altitudes e vão aumentando à medida que se distanciam do “água verdadeira”. É um dos cenários mais estratificados que já vi, na falta de um termo mais condizente. Grudado ao rio, a Serra do Porto, com média de 800m de altitude; após um vale, a Serra da Sapoca, com 900m; outro vale e a próxima é a Serra da Guaxinduva, com altitudes beirando os 1200m; e por fim, quase obstruída pela antecessora, a Serra do Japi, com aproximados 1300m em seu ponto mais elevado. Enfim, é uma escadaria de montanhas que parte do rio em direção ao horizonte. Posso estar enganado, mas imagino que todos estejam com a vegetação nativa ainda intacta, preservados como o Tietê nunca foi. Teriam os bandeirantes dos séculos XVI e XVII, que aqui subiam para estudar o caminho para as bandeiras, a mesma admiração por esse cenário? Ou será que viam a natureza como um empecilho às suas tarefas de apresamento de indígenas e conquista de títulos reais na forma de sesmarias? Talvez ambos. Não dizem que o belo emana do perigoso?

São Paulo novamente, no Planalto de Piratininga

Morro do Saboó, em São Roque

O Tietê e as serras que o emparedam

Equídeos em área de nascente
Foram 2,6km palmilhados e um desnível de 202 metros derrocado. Era chegada a hora de regressar. Com o objetivo cumprido, tomamos o caminho de volta, admirando pela última vez a superfície do Morro do Voturuna. Ao passarmos pela nascente topamos com cerca de dez equídeos, entre mulas e cavalos. Não sei como vieram parar aqui, e também não sei se essa parte do morro é propriedade particular. Tomara que não, pois é um ermo tombado e considerado um refúgio forçado da fauna e da flora paulista, pois tudo ao seu redor foi explorado e ocupado. Ele vem resistindo, e acredito que a criação de um Parque Estadual seja necessária para protegê-lo das constantes investidas da raça humana. Senti a falta de pássaros. Não fotografei e nem vi um espécime sequer. Li os relatos de Benê Moura sobre a retirada de pássaros para engaiolamento e comercialização por ignorantes que não respeitam a avifauna. A era bandeirantista, que aprisionava indígenas, ficou para trás, mas a consciência humana pouco mudou com o passar dos séculos. Apenas aprisiona-se seres vivos diferentes, esses menores, numa mostra irrefutável de que desfrutamos de mais recursos materiais que os bandeirantes, mas perdemos em galhardia. Somos mais covardes que os maltrapilhos andejos do sertão. Enfim, o Voturuna, de onde se partia em exploração ao desconhecido, subsistirá enquanto a vontade de poucos em preservá-lo perdurar. Eu, que já perdi a fé no ser humano há muito tempo, colaboro com minhas críticas pedantes, denunciando pormenorizadamente o que vejo de errado e esperando que minhas palavras sejam lidas por pessoas capazes de agir com força.

Extração de quartzito, à direita. Apesar de tombado, o Voturuna "sangra"

Adeus, Morro do Voturuna

O regresso
Um último adeus ao ribeirão (seria nessas águas que encontraram ouro?) e aos rubros fungos da trilha da cachoeira. Reavemos nossas motos e partimos, de costas para o morro do qual nos tornamos íntimos. Em meio à quiçaça, uma derradeira fotografia de sua face leste. Continuamos pela Estrada do Suru, pela Estrada da Capela Velha e pela rodovia Castello Branco, acessando a partir dessa última uma vicinal que contornou a face oeste da Serra do Voturuna. A estafa se estampava na feição de todos, mas ainda pensávamos em levar a cabo uma tarefa: localizar a Cachoeira do Guaxinduva, em Cabreúva. Serpenteamos pela Estrada dos Romeiros até esse município, subindo posteriormente por uma via de ligação com a SP300. Adentramos uma vicinal e uma curta estrada de terra, mas fomos barrados nos portões fortificados de uma fazenda. O porteiro nos informou que desconhecia existir qualquer cachoeira na região. Restou-nos abortar o intento, seguir pela SP300 até Jundiaí e rumar pela Bandeirantes até Campinas, onde nos enviesamos pela Anhanguera. Às 19h, com o sol ainda raiando, apeávamos na Praia Azul após 330km rodados. Não foi uma grande viagem em termos de distâncias, mas foi uma das mais satisfatórias dentre todas as curtas incursões ensejadas pelas brechas da terrível rotina cosmopolita. Destarte, foi a primeira de um ano que promete muitas surpresas, boas e más. Eu sigo, sem dinheiro e sem regalias, vestindo os mesmos andrajos há mais de 10 anos, mas procurando conhecer ao máximo esse nosso país cada vez mais carente de viajantes. Cada vez mais carente de nós, que vivemos como se não existisse nada histórico e natural ao nosso redor.
 “Não há palavras para descrever o que vejo”. Iniciei a postagem com as palavras de Luiz, e termino-a com as de Rafael. Talvez houvesse palavras, meu caro amigo, se a observação do que realmente nos convém fosse a regra, e não a exceção. Somos capazes de minuciar todo o nosso ódio, em português compreensível e embargado, contra o governo, o sistema e outras pessoas que afetam negativamente nossas vidas. Quando estupefatos, maravilhados ou dispostos em frente ao belo, simplesmente não conseguimos expressar nossas sensações. Esse, a meu ver, é o grande mal da humanidade. É o grande leviatã que tentamos arpoar para reaver o simples e não apenas sobreviver, mas viver.

 
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.
 

Um agradecimento especial a Benê Moura, idealizador do site trilhas.info, pelos mapas e informações fornecidos. Sem eles sería impossível um desfecho satisfatório para essa aventura.

E abaixo, um blues para o rio Tietê e para a vista do Morro do Voturuna.


9 comentários:

  1. Garoto, vocês são pessoas abençoada s por Deus. Ter uma oportunidade dessas é ouro. Que venham outras e que eu esteja viva para acompanhar mesmo que de longe. Muito longe.
    Beijos!!

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    1. Somos pessoas bem persistentes! Foi uma árdua e estafante caminhada para chegar ao local pretendido, mas no fim foi uma vista recompensante.
      A vida premia os aventureiros com cenários deslumbrantes. Espero que seja assim para sempre.
      Beijo.

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  2. Quantos lugares maravilhosos conheço através de seu blog. Sinto ate (em meio a meus devaneios) a brisa dos lugares de tanta vontade que da de esta pisando neles.
    Muito bom seu blog viu.

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    1. O Brasil tem tantos lugares para se conhecer que sinto que uma vida de 100 anos não me seria suficiente! Bom, sigo explorando-o e registrando-o a minha maneira, e é bom saber que, de uma forma ou de outra, acabo inspirando outrem.
      Obrigado pelo elogio. E volte sempre.

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  3. Flotte bilder og nydelig landskap:))
    Klem fra Norge:))

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  4. Gostei muito das fotos de minha cidade (Pirapora).Vou mostrá-las aos meus alunos para que vejam como nossa cidade é bonita. Obrigada!

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    1. Pirapora é realmente um belo lugar. É uma pena que o Tietê chegue imundo a sua cidade. Quando vou para lá sinto que estou chegando em Morretes, no Paraná, mas não é o límpido Nhundiaquara que me espera, e sim o judiado Tietê. Vamos esperar que esse quadro um dia se reverta. Abraços e continue acompanhando o bog.

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  5. Belíssimo post!
    Desde a estrada dos romeiros, sempre vejo o Morro do Votoruna. (Muitos me chamam de louco, mas sempre viajo entre Itu e São Paulo pela Romeiros, pelo puro prazer de contemplar a geografia da região)
    Agora com o seu relato, enfim tenho preciosas dicas de como chegar ali.

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