segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú – 02 de novembro de 2011


Quantas epifanias um homem é capaz de suportar? Eu, até o presente momento, resisti a um turbilhão delas. Lembro-me vagamente das primeiras; das derradeiras concisamente, mas insuflado por um apreço que me enviesa ao ascetismo. Muitas ainda virão. Enquanto isso borbulham, perenes, sob a superfície outrora mesquinha e agora carregada de significados, mesmo que difusos. Não temo o porvir. Com um bródio aclamarei a chegada de uma nova estação, permitindo-a que modifique a seu bel-prazer minha essência. O novo “eu”, então, já não será apenas mais um corpo que vive assolado por gravidade, inércia e alienação. Será, em suma, um órgão integrante deste imenso organismo chamado Terra.
Amizades pelo caminho
Eu, Rodrigo Costa Gil, Levi Vieira e Luiz Paulo Blanes, após um encontro nas proximidades do controverso portal de Americana, decidimos levar a cabo uma curta viagem a duas cidades muito conhecidas pelos adeptos do turismo religioso: Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú, ambas no Estado de São Paulo. Pela primeira vez desde que me dispus a mapear o Brasil tenho três companheiros ao meu lado, e visualizá-los em minhas rápidas passadas de olhos pelo espelho retrovisor foi assaz confortante. A força de nossa amizade possibilitou a feitura de diversas outras pelo caminho, o que me fez lembrar da conflitante conclusão a que chegou Cristopher McCandless poucos dias antes do beijo da morte: de que me serve viver em meio ao mundo selvagem se não tenho com quem conversar a respeito?
Vicinal Porto Ferreira-Santa Rita
Enfrentamos a temida Anhanguera, com sentido a Ribeirão Preto, logo pela manhã. A mesmice do caminho e das paisagens era esperada, haja vista a quantidade de ocasiões em que nesta rodovia estive. Em Porto Ferreira, 100km depois, a estória principiou a se modificar ao acessarmos uma vicinal que se ramifica de dentro da cidade com direção a Santa Rita do Passa Quatro. O impetuoso frio, mesmo sob a luzência do sol, nos obrigou a esporádicas paradas. Em uma delas, abrigados do vento por um “calabouço natural” de vegetação alta, aproveitamos o ensejo para uma sessão de fotos. Luiz Paulo Blanes, gatuno inconsequente, por sua vez, atravessou uma cerca para saquear laranjas de uma plantação às margens da vicinal que, de tão calma, nela se podia sentar sobre as faixas contínuas, descascar e degustar os carnudos frutos cítricos recém furtados.
Santa Rita do Passa Quatro
Logo ao chegarmos a Santa Rita, algumas indicações de cachoeiras saltaram aos nossos olhos. O escopo era conhecê-las todas, mas não poderíamos deixar de visitar o centro da cidade e a incrível Igreja Matriz, que se impõe visualmente com ampla folga sobre as outras edificações. Mesmo na condição de ateu fico abismado com a aura destas grandiloquentes obras arquitetônicas. A praça imediatamente em frente a mesma é ampla e repleta de placas em homenagem a Zequinha de Abreu (1880-1935), compositor do clássico da música nacional Tico-Tico no Fubá, que aqui nasceu e viveu, tornando-se o maior orgulho da cidade que, hoje, detém o título de Estância Climática. Um casal de maritacas permitiu a minha aproximação e o privilégio de “capturá-las” digitalmente, para o deleite do ornitólogo que vez ou outra se apossa de mim.

Maritacas

Ruínas da Casa de Força
Após um desjejum e coleta de informações em uma padaria local, dirigimo-nos à vicinal Santa Rita-Tambaú. Dela são acessados praticamente todos os atrativos naturais da cidade. A Cachoeira de Três Quedas, o primeiro deles, foi facilmente localizada. Estacionamos as motocicletas próximas à base de uma imensa e íngreme escadaria, que descemos cuidadosamente a pé. Ao término da mesma nos deparamos com as ruínas da Casa de Força da primeira usina hidrelétrica da região, construída no fim do século XIX. Em meio à alvenaria a natureza ascende visando os céus, utilizando as paredes como base para seus imensos troncos e raízes. Infelizmente o local, de acesso público, é assolado pelos artefatos cortantes empunhados por cidadãos que não respeitam a própria História e, por este motivo, insistem entalhar suas “graças” na nostálgica construção, poluindo-a visualmente.
Cachoeira de Três Quedas
Três Quedas, em si, não é das cachoeiras mais vistosas. Sua designação não poderia ser menos coerente: realmente são três quedas, feito uma escada, mas com pouco volume de água por estar inserida no curso de um córrego, o Passa Quatro. Não tenho a altura oficial das cascatas, mas eu diria que, no total, as três somadas não devem passar dos vinte metros. As fotos, inclusive, não ficaram tão aparentes devido à forte incidência dos raios solares sobre a cabeceira da cachoeira. Luiz Paulo, o nosso “boi de piranha” para banhos de cascata, não demonstrou interesse em pular na fria água. Contentamo-nos, então, em apenas permanecer por um momento encostados às pedras da segunda cascata. Parcialmente satisfeitos, vencemos novamente a escadaria, agora ascendendo, para nos unirmos às nossas motocicletas e levarmos adiante a incursão de Finados.

A segunda das três quedas

A natureza contra a engenharia
Ao sairmos de Três Quedas fomos alertados por um transeunte, usuário de entorpecentes pesados (infelizmente nos arredores de cachoeiras é comum vê-los), que deveríamos ter cuidado com a vicinal alguns quilômetros à frente, visto que as chuvas do fim de semana anterior haviam castigado em demasia o asfalto da estreita estrada. Para a nossa estupefação, o toxicômano estava certo: uma erosão medonha, numa baixada, teve que ser contornada por um curto trecho em terra. A cratera gigantesca, mas bem sinalizada por grandes placas amarelas, não chegou a atrasar a viagem, mas nos fez imaginar a força natural da água duelando com a inofensiva engenharia humana. E vencendo. Um tucano e um urubu-de-cara-branca sobrevoaram o local enquanto o fotografávamos. Desta vez não tive tempo hábil para “capturá-los”.
Cabeceira de São Valentim
Após o estarrecimento catastrófico, adentramos uma estrada turística, repleta de pousadas, em direção a Usina São Valentim. Uma ponte, sobre o limiar da queda d'água, nos pareceu dar acesso à base da gigantesca cachoeira, homônima à usina. Contudo, erramos em nossos projeções. Restou-me tentar acessar, sozinho, a parte baixa da cachoeira por uma estrada de terra em meio a um canavial próximo, o que também não rendeu frutos. Felizmente encontrei Paraíba, um funcionário da usina, que me deixou voltar por dentro dos domínios da propriedade e chamar os meus companheiros. Paraíba frisou que a cachoeira estava fechada à visitação. Não obstante, deixou-nos conhecer um pouco da estrutura e do maquinário da usina. Negociamos um pouco e Paraíba solicitamente “mexeu uns pauzinhos”: concederam-nos a permissão para descer à cachoeira. Antes corremos de um Rottweiler que subia as escadas em nossa direção. Recuei meus companheiros e os fechei atrás de uma grade de pouco mais de um metro de altura. Retardaria por apenas alguns segundos nossa desgraça. Para o nosso alívio, era apenas um filhote. De longe parecia bem mais assustador.

O cão-de-guarda de São Valentim

Cachoeira e Usina de São Valentim
Pedras barrentas foram transpostas para que chegássemos próximos à cachoeira. Torci meu pé esquerdo, escorreguei diversas vezes, encharquei minhas botas. Meus companheiros, como que a acompanhar-me, também não saíram ilesos. Mas por quê choramingar se os 82 metros de queda d'água de São Valentim, no curso do Rio Clarim, nos impressionaram pelo enorme caminho que a esvoaçante água percorre de sua cabeceira ao inevitável contato com as rochas dispostas no fundo do vale? O volume de água não é poderoso, mas isso não diminui o garbo da cachoeira que, em contraste com a casa das máquinas alguns metros abaixo, onde as turbinas da hidrelétrica são abrigadas, possibilitam fotografias não menos garbosas. Vale ressaltar que a hidrelétrica, construída em 1910, foi desativada em 1976 e reposta em funcionamento em 2007. Gera energia para todo o território de Santa Rita do Passa Quatro. Para quem quiser aventurar-se por aqui, digo que venha preparado. São 352 degraus que te guiam ao “paraíso”; 352 que te trazem de volta ao “inferno”.
Zito Silvério conosco
Deixamos São Valentim e seu pedregoso vale. Com o dia ainda vívido, propus aos meus camaradas que estendêssemos a viagem até Tambaú, município vizinho. Eu tinha informações sobre uma cachoeira praticamente desconhecida pela população e turistas locais, visto que o que pesa, nestas bandas, é indubitavelmente o turismo religioso, e não o ecológico. Todos concordaram e voltamos para a vicinal Santa Rita-Tambaú. Poucos quilômetros depois estávamos no distrito de Santa Cruz da Estrela, ainda nos domínios de Santa Rita do Passa Quatro. Enquanto estudávamos o mapa, alguns moradores se aproximaram e gentilmente nos passaram algumas informações sobre o caminho que trilharíamos. Um destes foi Zito Silvério, poeta e jornalista, que de uma maneira afetuosa nos contou um pouco da história do distrito. Assegurou que Zequinha de Abreu em Santa Cruz da Estrela, precisamente, nasceu e residiu. Apontou, ao fundo de onde conversávamos, a igreja onde o compositor se casou.

A caminho das Quedas do Rebojo, na zona rural de Tambaú

Nosso guia
Com mais amizades no coldre, terminamos o percurso a Tambaú. Mesmo com muitas dúvidas em relação ao caminho, localizamos a Rodovia Padre Donizetti. Seguimos por esta por cerca de 2km, e então avistamos uma estrada de chão próxima a uma cerâmica que, segundo informações da planilha que eu detinha, deveria ser acessada para que chegássemos à Cachoeira do Rebojo. Nesta estrada, mais de areia do que de terra, rodamos por 25km. Os três últimos, os mais árduos, de tão entroncados fizeram com que eu me desnorteasse. Meu apelido de “GPS” (só utilizo mapas de papel, hei de ressaltar) neste momento não me caracterizou. Um senhor, morador de um sítio local, passou sobre uma velha motocicleta trinta minutos depois que nos sentáramos à sombra de uma jabuticabeira. Poderíamos ficar horas ali sem que alma alguma fosse avistada e nos prestasse auxílio, mas demos sorte. Sem capacete e num ritmo que eu diria inapropriado para uma estrada arenosa, o velho homem humildemente nos guiou à Fazenda da Cachoeira, local que, segundo ele, abrigava a cachoeira que tanto almejávamos conhecer.
Carcará próximo à fazenda
Despedimo-nos do nosso guia e atracamos às porteiras da Fazenda da Cachoeira. De dentro de uma casa, a cerca de vinte metros de onde estávamos, surgiu um homem que lentamente se moveu em nossa direção. Interpelamos o sujeito a respeito da cachoeira. Num primeiro momento disse não existir queda d'água alguma por ali. Num segundo, contudo, permitiu a descida, a pé, pela trilha que parte da casa em direção ao Rebojo, mediante, logicamente, o pagamento de uma quantia em dinheiro. Estávamos ali, maltrapilhos e cansados. Não poderíamos sair destes confins sem nos banharmos na cachoeira. O capital pago não foi assim tão exorbitante. Todos que detêm cachoeiras em seus domínios cobram taxas para visitação. Não esperávamos um sistema diferente neste local.
Cachoeira do Rebojo
Descemos por uma pequena trilha. A primeira parte entre as pastagens; a segunda entre mata fechada. Ao avistarmos a Cachoeira do Rebojo a fadiga e o nervosismo se esvaíram: duas quedas d'água de não mais do que dez metros, sendo a da esquerda com águas mais serenas e a da direita com águas vigorosas. O riacho límpido e gélido, após as cascatas, segue manso seu curso em direção a outros recônditos. Mesmo sem roupa reserva acabei adentrando a piscina natural que se forma aos pés das quedas. Posteriormente alimentei uma fogueira para secar meus andrajos e defumar-me com uma espécie de flor roxa abundante no local. Este é o banho possível na selva. Não encontramos peixes e, com o estômago pedindo calorias, tivemos que nos contentar com as carnudas laranjas que Luiz Paulo saqueara ainda no princípio da viagem.

Duas quedas de diferentes intensidades

Quedas anteriores à cachoeira
Quando nos preparávamos para regressar, eis que Luiz Paulo Blanes encontra uma picada numa encosta do riacho. Descalços, eu e ele subimos e localizamos uma cerca de arames, que foi rapidamente vencida. Do outro lado caminhamos em direção à cabeceira da cachoeira. Adentrando uma outra picada, para a nossa surpresa demos de cara com o princípio das quedas do Rebojo e, de quebra, com uma cascata de apenas dois metros, mas consideravelmente mais larga que as “irmãs” maiores riacho abaixo. Rodrigo e Levi, ao nos avistarem, seguiram pelos mesmos passos, trazendo consigo, logicamente, a câmera para que eu pudesse registrar o local. Águas profundas, que tive de vencer com o braço que segurava a câmera para cima, longe da água, formam aqui uma piscina natural translúcida que, com a incidência de esparsos raios solares, vivificam tons de mel.
Cachoeira de Emas
Após boas três horas de incondicional veneração, tivemos que partir. Voltamos pela mesma trilha, alcançando a casa do relutante homem que nos “permitira” visitar a cachoeira. Dele extraímos outras informações sobre a estrada de terra que se seguiria. Incontinenti labutamos contra os areais, cortando plantações de laranja, eucaliptos e bandos de carcarás. Velozmente encontramos a Rodovia Padre Donizetti e retornamos a Tambaú, de onde nos dirigimos a Santa Cruz da Conceição e Cachoeira de Emas. Nesta última, uma parada para reflexão, o que costumo fazer sempre que viajo em grupo. Pude captar, enquanto fotografava o Rio Mogi sobre a ponte, os diálogos entre meus camaradas e determinar os efeitos que os lugares em que estivemos provocaram na personalidade de cada um. Com o objetivo cumprido e com a bola de fogo laranja nos céus ensaiando uma retirada, partimos pela Anhanguera, mais realizados do que quando começamos a trilhar os 360km no começo do dia.
Obtempero o óbvio com consciente estática; às epifanias, com uma contundência cega e inconsequente. Sinto-me como Buck, de Jack London, ouvindo o apelo da selva. Não há razão para temer, para se sentir selvagem, rústico, ligado à mãe Terra. Não peço desculpas a vocês, meus companheiros, que um dia balbuciaram que me embrenho no mato e carrego-os comigo, colocando-os em perigo. O que vemos nos recompensa. O único risco, na verdade, é petrificar o coração e a alma ao abdicar do prazer de não estar em lugares como os que estivemos. O único risco é o conforto.


Mais fotos aqui.

E abaixo um lamento que compus em 2006 ao magnânimo Newton Norio Nabeta, que numa conversa contundente despertou uma de minhas várias epifanias. Daquele momento em diante deixei de ser antropocentrista e me metamorfoseei em biocentrista. Estendo esta nova gravação às cachoeiras de Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú.


“Estou correndo atrás de ti, porém não sei onde estás.
Pareço não conseguir alcançar-te.
Ah! Como quero que me conheças”!
(Travis Meeks)

5 comentários:

  1. Marcão, quero conhecer essas cachoeiras!!!

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  2. como faço para chegar nesta bela cachoeira . Moro em Santa rosa de Viterbo .

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    1. As cachoeiras de Santa Rita do Passa Quatro são fáceis de localizar. Existem placas indicativas por toda a cidade. A de Tambaú infelizmente está em em uma propriedade privada e os donos não permitem a entrada. Na ocasião precisamos "subornar" o caseiro para que nos deixasse acessar a trilha.
      Obrigado pela visita. Já passei em Santa Rosa de Viterbo em várias ocasiões. Há inclusive fotos da estação aqui no blog.
      Grande abraço.

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  3. Olá, achei interessantissimo sua passagem por essas terras, mas venho alertar aos possíveis visitantes da Cachoeira do Rebojo. Ela esta localizada na divisa das terras, o lado o qual você entrou os donos residem na cidade de Tambaú, já o outro pertence ao meu avô, residente em Santa Rosa. A entrada é proibida por ambas as margens, o lado pertencente ao meu avô possui respaldo judicial para aplicar sanções aqueles que insistirem em visitar a localidade. Não acreditem no sitiante que mora perto de uma das entradas, o qual afirma ser o proprietário das terras e cobra a entrada de turistas. Atualmente um controle do local é feito por problemas já ocorridos, sendo expressamente proibida a visita de estranhos.

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