sábado, 19 de novembro de 2011

Estrada da Petrobrás e Ilha Bela – de 13 a 15 de novembro de 2011


O céu, como um sorriso que não se sabe irônico, alegre ou tristonho, é um imenso engodo. Muitas das estrelas que luzem no firmamento feneceram há décadas, e suas luzes, que vagam por muito tempo no espaço sideral mesmo após os colapsos estelares, somente encontram a atmosfera terrestre anos adiante. Algumas, porém, esplendorosamente ainda perduram e emanam seus brilhos que, dentre outras coisas, suscitam nossos devaneios. De verossimilhanças e falcatruas o universo perpetua o seu poder. De verdades e inverdades ele se faz imprevisível e me ganha por inteiro. Portanto, um céu recoberto por densas e carregadas nuvens carrega indubitavelmente um certo morbidismo a tiracolo, que pode nos prostrar letárgicos, mas também age como uma manta, encobrindo o vívido brilho das “defuntas” estrelas, tornando a visão, por conseguinte, mais real. Não ignoro tempos chuvosos. Pelo contrário, admiro a veracidade que eclode de seus tons cinzentos. Sigo viagem, sobretudo quando todos bradam para eu me abrigar. Encaro o mundo, mesmo sob a iminente tempestade.
Quem vai ficar? Quem vai partir?
Tal antelóquio, a meu ver, é necessário para o entendimento do arrazoado que se seguirá. Pela primeira vez desde que me propus a viajar, a me situar neste mundo que acredito ser meu e, em decorrência disso, a encontrar o meu próprio “eu”, fui assolado ininterruptamente pelas intempéries do nosso clima tropical. Chuvas torrenciais, por três dias, encharcaram os meus caminhos, mas não encolheram os meus ímpetos. Poderia ter permanecido hirto, escutando o tilintar das gotas d'água que osculam o alumínio das calhas que, observado através da janela do meu quarto, embalam outros tipos de devaneios, estes bem menos interessantes que os supracitados. Preferi, contudo, convocar o meu já longevo camarada Luiz Paulo Blanes para uma incursão por dois locais, no mínimo, excêntricos. Luiz, por sua vez, contatou Thiago Lucas Santos para acompanhar-nos. Os litros e litros de água que foram derramados sobre nós, depois disso, são apenas mais um detalhe, e não os protagonistas desta árdua cruzada pelo litoral norte paulista.
Represa de Atibainha
Partimos de Americana exatamente às oito da manhã de um domingo acinzentado. Deixamos a nossa querida Praia Azul – e seu povo que tanto fez e ainda faz por mim – e rumamos para a Anhanguera, com sentido à capital, para posteriormente acessarmos a Rodovia Dom Pedro. Em minhas inúmeras viagens tenho mencionado estas duas rodovias. Na maioria das vezes auguro evitá-las, simplesmente por serem estradas há muito conhecidas e que vez ou outra me causam certo asco. Não obstante, utilizei-me de uma outra abordagem e, mesmo que o visual não tenha sido tão marcante, acabamos conhecendo a imponente Represa de Atibainha, em Nazaré Paulista. Esta sempre foi vista pelo canto dos olhos, mas nunca analisada e fotografada. Estacionamos as motocicletas perto de sua orla, descemos por uma trilha e registramos o “mar” artificial de 25km². De lá seguimos o curso pela mesma rodovia, pendendo depois para a Dutra, da qual acessamos respectivamente Jacareí, Santa Branca e Salesópolis. Desta última se ramifica a Estrada da Petrobrás, nosso primeiro objetivo.

Santa Branca

Estrada da Petrobrás
A Estrada da Petrobrás, por alguns conhecida como Estrada do Sol, carrega esta denominação por antigamente pertencer exclusivamente à empresa homônima, famosa no exterior por sua imponência econômica, e dentro de seu país natal por encarecer absurdamente os preços do combustível tupiniquim. Era utilizada pelas equipes da multinacional como forma de facilitar a manutenção do oleoduto que parte de São Sebastião e encontra o seu fim em Paulínia. Quando foi aberta ao público, a estrada com 75km de extensão em meio à Serra do Mar, toda de terra e repleta de atrativos naturais, se transformou em uma nova possibilidade de rota para quem se dirige ao litoral norte paulista. Logicamente os mais aventureiros por ela ousam se embrenhar. Àqueles que o tempo urge, a Tamoios, enfadonho caminho, ainda é a melhor opção.
Rio Tietê em Salesópolis
Os primeiros dez quilômetros da estrada são fastidiosos. Algumas chácaras, pontos de extração de eucalipto e chão de terra batida em boas condições são a tônica. No km 12, entretanto, uma guinada é perceptível. Transpassamos uma pequena ponte e, para a nossa surpresa, tratava-se do Rio Tietê correndo por debaixo dela. Digo surpresa porque geograficamente não se assemelhava ao rio de grandes proporções (e fétido) que estamos acostumados a ver na marginal de São Paulo, em Pirapora do Bom Jesus ou mesmo em Barra Bonita. Na verdade, não passava de uma mansa corredeira, repleta de rochas arredondadas recobertas por musgo, transparentemente límpido e com não mais que dois ou três metros de largura. Com certo trabalho conseguimos alcançar suas margens e fotografá-lo sob da ponte. Segundo a planilha que seguíamos, a nascente se encontrava a um, talvez dois quilômetros rio acima. Numa rápida toada, então, retornamos à Estrada do Sol, agora visando localizar o princípio deste grande e injustiçado rio nacional.
Nascente do Rio Tietê
Dando procedência, passamos por um canil e alcançamos um vilarejo, no qual coletamos informações dos receptivos cidadãos. Deixamos a Estrada da Petrobrás um quilômetro à frente, seguimos por uma entrada à esquerda e, seis quilômetros depois, atracávamos à portaria do Parque Nascentes do Rio Tietê. Pagamos uma quantia irrisória de dinheiro e descemos por uma curta trilha até a nascente do rio mais degradado do Brasil. Por entre as pedras um filete de água é lentamente esguichado, seguindo um curso sereno de dois palmos de largura. À primeira vista o lugar impressiona, afinal temos uma outra ideia do Tietê (“água verdadeira”, em tupi). Não imaginamos que toda aquela imensidão de 1010km de extensão se principia com uma “baba” por entre duas simplórias rochas. Gastão, um guia do parque, nos deu alguns dados interessantes do rio em geral. Soubemos, por exemplo, que a nascente está situada a uma altitude de 1120 metros, em meio a Serra do Mar (como toda a Estrada do Sol) e a apenas 22km de distância, em linha reta, do litoral paulista. Apesar da proximidade, não deságua no Atlântico. A geografia de suas nascentes o obrigam a seguir seu curso na direção oposta, até “colidir” com o Rio Paraná na divisa do Estado de São Paulo com o Mato Grosso do Sul.

Referência no Parque Nascentes do Rio Tietê

Vale na Serra do Mar
Deixamos o Parque Nascentes do Rio Tietê boquiabertos com a dinâmica e a desenvoltura da natureza. Retornamos à Estrada da Petrobrás e continuamos rumo ao litoral. Um vale, um pouco à frente, foi meritório de uma parada apreciativa. Uma casa solitária, com uma velha motocicleta e um senhor sentado à porta enrolando um cigarro de palha, nos surpreendeu em meio ao caminho. Neste ponto a Mata Atlântica já se mostrava densa, visto que já não existiam propriedades e, um quilômetro adiante, se iniciavam os domínios do Parque Estadual da Serra do Mar. Uma grande placa indicativa comprovou que estávamos seguindo corretamente a planilha. Mais seguros, localizamos as indicações e pinos amarelos da Petrobrás no km 24. Procurávamos por ali uma cachoeira de nome desconhecido.
Cachoeira de nome desconhecido
Saindo da via principal, adentramos a mata, ainda sobre as motocicletas, até um ponto em que ficou impossível continuarmos com elas. Camuflamo-las em uma quiçaça e descemos a pé pelo matagal, guiados unicamente pelo barulho de corredeiras. Localizamos, sem muito esforço, um pequeno tobogã d'água. Decididos a encontrar uma queda maior, seguimos o curso do riacho e, com a vegetação cada vez mais envolvente, fomos topando com diversas minúsculas cachoeiras. Uma gruta, em meio aos cipós, nos saltou aos olhos, e passada a mesma visualizamos uma garbosa queda de pelo menos dez metros. Vinte metros depois, um precipício e uma outra queda de 40 metros. Infelizmente não havia como descer, e tivemos que nos contentar com a vista parcial da cabeceira da cachoeira.
A neblina da Serra do Mar
Quando nos reunimos às nossas motocicletas, o tempo mudara e uma densa neblina, comum à serra do mar, envolvia o ambiente. Estávamos na parte mais elevada da estrada, a cerca de 1150m acima do nível do mar. Sem muita visibilidade, portanto, partimos. Mal pude notar um amontoado de grandes rochas, com talvez 6 metros de altura, na margem esquerda do km 26. Paramos para registrar o local e sentimos sede, visto que havíamos nos desidratado na pesada trilha para as cachoeiras. Encontramos água apenas no km 35, quando o Rio Pardo trilhava seu caminho rumo ao mar por debaixo de uma ponte. Água fresca e potável, com gosto de pedras, ao mísero preço de botas encharcadas devido a dois sucessivos escorregões, saciou minha necessidade de líquidos.

Rio Pardo

Rio Verde
Após o Rio Pardo, sempre mais do mesmo, o que não consistiu em motivo para reclamações. Cruzamos uma base da Petrobrás e topamos com alguns seres humanos, o que é bem raro por aqui. Vimos ainda uma corredeira-tobogã extensa no km 42 e o Rio Verde no km 46, escoando vagarosamente sob uma ponte de madeira. No km 66 trespassamos o Rio Claro, mas não nos demos ao trabalho de fotografá-lo por se encontrar já no fim da estrada, em uma área que começava a se mostrar urbanizada demais e, devido a isso, pouco interessante. A Estrada do Sol terminava, no km 75, entre os municípios de Caraguatatuba e São Sebastião. Com a noite começando a destronar a luz, decidimos pernoitar por ali mesmo, às margens da BR101. No outro dia se iniciaria a segunda parte da incursão.
Travessia de balsa
O segundo dia amanheceu chuvoso, como era de se esperar. Optamos por seguir viagem rumo a Ilha Bela, mesmo com uma insossa relutância de minha parte. Deixamos Caraguatatuba e incontinenti adentramos a balsa na Rua da Praia em São Sebastião, que por cerca de 20 minutos nos transportou sobre o mar até atracarmos e desembarcarmos na “capital dos mosquitos borrachudos”. Quando se viaja em grupo, nota-se nos companheiros os efeitos da mudança repentina de ambientes. Thiago, por exemplo, frisou nunca ter visto um navio tão próximo, e mesmo nunca ter colocado os pés sobre uma embarcação marítima, como era o caso do balsa. Eu apenas observava a ilha se aproximando e o continente se distanciando. Tentava inutilmente registrar em fotos o que via, mas a chuva, inexorável, me instava a guardar a câmera, caso contrário correria o risco de avariá-la. Luiz Paulo, como usual, pensava na temida Estrada de Castelhanos, que tínhamos a intenção de trilhar.
Estrada de Castelhanos
Já em solo insular, rapidamente localizamos a estrada, de terra, que nos levaria à Praia de Castelhanos, na parte leste e desabitada de Ilha Bela (a parte oeste é habitada como qualquer outra cidade). A ilha preserva 3% de toda a mata atlântica do Estado de São Paulo, e a estrada que desbravaríamos “corta” grande parte desta vegetação por estar inserida no Parque Estadual de Ilha Bela. Vencemos os oito primeiros quilômetros facilmente, passando pela portaria do parque, por algumas corredeiras e por uma cachoeira de aproximadamente 12 metros. Do nono quilômetro em diante a mata se fechou em demasia. Poças d'água de grandes dimensões nos obrigaram a levar a cabo manobras arriscadas. A chuva piorou ainda mais a condição da estrada, bem como a ação de alguns jipeiros que praticamente “jogavam” seus imensos automóveis sobre nossas motocicletas. Conversando com um morador de Castelhanos, tomamos consciência da conduta destes “motoristas”. Segundo ele, muitos (e digo “muitos”, não “todos”) encaram a Estrada de Castelhanos como uma “pista de treinamento” para carros 4x4 e simplesmente não se apetecem com a presença de pessoas e automóveis que “atrapalham” o caminho. Por ser uma área de preservação ambiental, acredito que quem atrapalha, na verdade, são os próprios jipeiros, o óleo diesel queimado pelos motores traçados e a imensa destruição da mata ocasionada por seus grandes monstros de metal.

Travessia de rio sobre a moto

Praia de Castelhanos
Lamúrias à parte, atravessamos um riacho de 15 metros de largura antes de alcançarmos definitivamente Castelhanos. O cenário, lindo apesar das nuvens, contrastou com o “inferno na terra” evocado pelos carnívoros borrachudos. Humanos são intrusos; os nativos são os mosquitos. Diferentemente de outras praias mais acessíveis, aqui não há muitas pessoas e quiosques, visto que nem mesmo luz elétrica está disponível aos poucos moradores, em sua grande maioria pescadores. Como dito anteriormente, não me aprazo por cenários praianos, mas perdi alguns minutos intentando sentir o que nunca senti no litoral: aquela sensação selvagem que somente o mato me proporciona. Não me contive, então, e instei meus camaradas a adentrar uma trilha em meio à mata rumo à Cachoeira do Gato. Prestamente atenderam ao meu pedido. Assentamos acampamento em uma área próxima ao mar, acomodamos nossa bagagem, apartamo-nos de nossas motocicletas e partimos a pé selva adentro.
Cachoeira do Gato
A trilha para a cachoeira em questão é intuitiva, mas em uma determinada bifurcação adentramos uma outra, de caçadores, que foi se fechando em demasia. Contumazes que somos, abrimos caminho com nossos antebraços até alcançarmos a margem de um rio. Acreditando ser este o rio em que se encontrava a queda, resolvemos subi-lo, ora dentro d'água ora pelos flancos. Localizamos uma volumosa cachoeira e algumas corredeiras, mas a do Gato não. Tentamos então retornar pela mesma trilha, mas nos vimos perdidos. Durante uma longa hora querelamos, procuramos, e enfim encontramos. Voltamos ao meio da trilha, atravessamos uma ponte de madeira e nos colocamos no caminho correto. Vinte minutos depois estávamos observando a Cachoeira do Gato e seus 80 metros de queda. Os respingos d'água quase impossibilitaram seu registro, mas acredito ter captado a essência da maravilhosa vista. O volume de água é grande, mas a água se atrita docilmente com o paredão rochoso, escorrendo lenta e continuamente, como se quisesse aproveitar cada segundo deste contato. Com a noite começando a cair, e exaustos, retornamos à praia e aos seus fatídicos enxames de borrachudos. O meu lado “selvagem” foi saciado. Regressei à areia apenas para dormir.

Uma das diversas cachoeiras de Ilha Bela

O regresso
Na manhã do terceiro dia nos pusemos em pé com o único intuito de ir embora. Contudo, a motocicleta de Luiz Paulo não dava sinal de vida. Acordamos pessoas o suficiente para que achássemos um par de fios que servissem ao propósito de ligarmos a bateria de minha motocicleta a dele. Com a bagagem devidamente acomodada nos alforges, deixamos Castelhanos, talvez para sempre. Castigados pelos mosquitos e pelo clima pesado, enfrentamos novamente a famigerada estrada. Após ela, novamente mais do mesmo: a balsa, São Sebastião, a 101, Mogi-Bertioga, Ayrton Senna, Bandeirantes, Anhanguera, Praia Azul, casa. Não me recordo de ter sentido tanta fadiga como nesta viagem. Vendo as poucas fotos me surpreendo com a bravura com que encaramos o desafio. Hoje posso vociferar sentenças como “bebi a água do Tietê” e “fui a Ilha Bela não para ver o mar, mas sim o mato”.
Detalho caminhos por neles, um dia, ter estado. Quando se conhece algo, pode-se sonhar com ele. Quando não se conhece, o que nos resta é fútil divagação. Esse meu azáfama em querer enxergar diferentes nuanças de azul e cinza no firmamento me é prejudicial, e como ninguém tenho consciência disso. Àqueles que me julgam antissocial, obtempero que não tenho tempo para questiúnculas. Com um mundo imenso ansiando pela minha visita, não há porque eu me demorar em desbravá-lo. Já não sou cronologicamente tão jovem como outrora, mas biologicamente ainda demonstro certo vigor. Meios sempre encontrarei para estar no topo de uma montanha, à beira de um riacho ou caminhando pelo cerrado, minha paixão suprema. Estratagemas sempre criarei para olvidar o óbvio. E não me esqueço de vós, meus nobres amigos, pois é por vocês que retorno. Carrego-os comigo o tempo todo. Que saibam disso.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues para o cinza dos céus do nosso litoral norte paulista.


“Há um êxtase que marca o apogeu da vida, além do qual a vida não se pode elevar mais. E tal é o paradoxo da existência, que esse êxtase surge quando se está mais vivo e surge sob a forma do completo esquecimento da própria vida. Esse êxtase, esse esquecimento de si, atinge o artista, surpreendido, em transe, num lençol de chamas, atinge o soldado, enlouquecido pela guerra, que numa batalha perdida recusa trégua e atingiu Buck, ao conduzir a matilha, soltando o antigo brado do lobo, perseguindo o alimento vivo que corria velozmente à sua frente, sob o luar. Estava explorando o que de mais profundo havia na sua natureza e, além de si mesmo, recuava até às entranhas do próprio tempo. Dominava-o uma pura explosão de vida, uma onda de euforia, a alegria perfeita de cada músculo, de cada articulação, a plenitude do sentimento de não estar morto, de ser pleno de cor e exuberância, exprimindo-se pelo movimento, voando exultante sob as estrelas e sobre a face da matéria morta e imóvel”. (Jack London, em O Apelo da Selva).

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